terça-feira, 8 de novembro de 2011


A MORTE DE UM FILHO JOVEM EM CIRCUNSTÂNCIA VIOLENTA: COMPREENDENDO A VIVÊNCIA DA MÃE




Atualmente a violência vem ganhando espaço e crescendo de maneira assustadora. O aumento de mortes de  jovens  por  homicídio é cada vez mais alarmante, sendo considerado, já em 1996 pela Organização Mundial de Saúde ( OMS ), como um importante problema de saúde pública.

A morte de um jovem é interpretada como interrupção no seu ciclo biológico e isso provoca sentimentos de impotência, frustração, tristeza, dor, sofrimento e angústia. Sabe-se que a morte é um fato inevitável, contudo, é difícil aceitar que aconteça precocemente.  Lidar  com a morte é uma questão difícil, muito pior quando ocorre com um filho, isso porque a morte de um jovem é uma situação que não é naturalmente pensada pela família, pois o normal seria que os pais morressem antes na perspectiva do ciclo vital.
Se a morte ocorre de maneira brusca e inesperada, é possível que o sentimento materno de perda irreparável se agrave, levando à não aceitação, desorganização e impotência da mãe.
Os sentimentos vivenciados pelas mães que perderam seus filhos por homicídio alimentam a busca de justiça e punição dos culpados, a ânsia de compreender o que aconteceu e a necessidade de expressar a dor e falar sobre a tragédia vivenciada, o que pode caracterizar possível fator de risco para o desenvolvimento de um luto complicado.

As mães que passaram por uma vivência de perda possuem características semelhantes , reveladas nas categorias analisadas a seguir:
Mumificando o filho na memória;
Morte e publicidade: trilhando dois caminhos;
Suportando a dor da morte de um filho: apego à espiritualidade;
Cumplicidade materna;

MUMIFICANDO O FILHO NA MEMÓRIA:
A perda de um filho se revela como um sofrimento intenso e complexo, isso porque, a intensidade da sintomatologia e duração do processo de luto parental frequentemente difere dos processos de luto por outros tipos de perda.
Para as mães, os sentimentos e o sofrimento pela circunstância da morte dos filhos são preservados e revividos a cada lembrança. Mesmo tendo ocorrido há muito tempo, cada uma relata minuciosamente cada detalhe do caso ocorrido com seu filho e descreve a seqüência dos fatos, com lembranças de horários, roupas, falas e desejos do filho antes de morrer.
Os relatos das mães revelaram o persistente estado de ligação, do vínculo de amor estabelecido com o filho que morreu, gerando elevadíssimos níveis de angústia.
Outro fator complicador para a vivência da perda de um filho por assassinato é a violência física contra seu corpo, que desperta nas mães a revolta e o desespero.
Em estudos as mortes por homicídios ocorridos por asfixia, armam de fogo, arma branca e agressões contra a vítima (estupro), mortes violentas que persistem na lembrança de cada mãe como “uma morte não digna”, aumentando a dor a cada momento e fazendo-a imaginar os instantes de sofrimento de seu filho ao morrer clamando por ajuda.
O estado em que fica a pessoa que morreu pode ter forte influência na memória e lembranças que se têm. Os discursos das mães revelam que essas lembranças são insuportáveis.
Apesar da inaceitabilidade da morte dos filhos, as mães não negam a morte desse filho. No entanto, é de intensa magnitude o apego às lembranças e à memória que elas carregam, sobretudo em relação ao filho, as quais são revividas intensamente, não importando quanto tempo tenha se passado.
Isso se  leva a acreditar em uma mumificação da memória materna, que conduz as mães ao desespero e a uma situação insustentável, mas também  significa a preservação do vínculo saudável com seu filho. Essa mumificação na memória se revela como um retornar do filho ao útero materno, para a proteção e privacidade de sentimentos tão nobres e delicados. Esta mumificação parece não significar negação da morte ou esperança de retorno do filho assassinado, e sim, demonstrar uma profunda ligação afetiva e desejo de justiça.
As reações de dor e sofrimento intenso, a mumificação das lembranças das mães diante da morte de um filho, revelam que as famílias acometidas pela violência não estão tendo assistência adequada, não têm o apoio necessário para o enfrentamento de tamanha tragédia, que pode atingir de forma negativa sua vida pessoal, familiar e social.

MORTE E PUBLICIDADE: TRILHANDO DOIS CAMINHOS
A mídia, em suas diversas formas, difunde amplamente junto à população os fatos de interesse ou que causam impacto. Das notícias por ela propagadas a violência está entre as mais comuns, em função dos seus índices crescentes e alarmantes. Neste sistema de informação, pelo interesse na audiência, existe uma evidente invasão da imprensa a qual transforma a perda em morte pública, levando a uma desumanização da morte e banalização do sofrimento.
Na posição de edição, escolhem os acontecimentos, as mortes que merecem “investimentos”, aquelas que resultarão em audiência e renderão leitura. Para isso invadem os locais dos acontecimentos, buscam relatos dos familiares, e com essa função, certamente correm o risco de atravessar a linha do bom senso e do respeito.
É patente a reação de repúdio e oposição da maioria das mães às atitudes dos repórteres ante a morte de seus filhos. Elas relatam a situação de desconforto em que foram colocadas pela imprensa sensacionalista, que invadiu sua privacidade somente pela busca de notícia e audiência.
São evidentes os problemas da cobertura jornalística e a falta de sensibilidade que permeiam os momentos de tragédia. A linha entre o dever de informar sobre uma tragédia e o respeito aos direitos dos que querem sofrer longe das lentes e dos microfones é muito  tênue e exige dos jornalistas grande respeito e sensibilidade.
Mas a massificação desses meios de comunicação aprofundam a tendência a transformar mortes trágicas em notícias, e de modo quase simultâneo, destacam a coisificação da morte. Deste modo, a morte se torna pública, impessoal, perdendo o seu caráter existencial, como a mais irremissível de todas as possibilidades.
Essas práticas que invadem e expõem a dor do outro, principalmente em se tratando de pessoas pobres e/ou anônimas, são comuns nos jornais e emissoras ditas populares, que vendem muito com as tragédias anunciadas.
Não obstante, o tratamento dado à notícia e a atitude da mídia diante da vítima e dos familiares dependem do perfil do órgão. Muitas vezes a mídia revela uma função positiva quanto à divulgação da informação, o que torna necessário compreender seu papel por outro prisma. Elemento essencial em nossa sociedade, à mídia atua também como agente de denúncia e, igualmente, como um agente fixador da memória, ao contar e produzir uma história para a sociedade e propagar a informação, podendo intensificar a resolução dos casos.
Diante de várias situações vivenciadas pelas mães em relação à mídia e à publicidade da morte violenta de seus filhos, compreende-se a existência de dois caminhos trilhados pelos meios de comunicação ao divulgar a morte por homicídio, caminhos que são opostos e com diferentes consequências: a mídia pode-se revelar como uma invasora de privacidade e, sob outra perspectiva, como uma aliada na busca de justiça e, indiretamente, na compreensão da dor da perda das mães.

SUPORTANDO A DOR DA MORTE DE UM FILHO: O APEGO À ESPIRITUALIDADE
O processo de vivência da perda refere-se às concepções que as mães têm do mundo, pois a perda pode pôr em causa, inicialmente, várias crenças e desafiar valores fundamentais na busca de compreensão da morte violenta de um filho.
Diante de uma morte cuja causa não é natural crescem os sentimentos de incompreensão, injustiça e revolta. A perda torna-se inaceitável, por tirar dos seus filhos o direito de viver, diferentemente de quando a morte acontece pelo processo natural de envelhecimento ou doença. Quando ela ocorre por ato de crueldade dos homens se torna inadmissível e inconformável para as mães.
A indignação, a revolta e o inconformismo das mães só encontraram guarida na espiritualidade, na crença de um mundo melhor que o mundo físico que se apresenta a elas - um mundo de violência, de desrespeito, de dor e sofrimento. Também, que outros recursos podem ter além da busca pelo sagrado?
As mães, logo de início, destacaram a crença em Deus como fortaleza para sobreviver  à morte violenta do filho.
É notória a relação intrínseca entre a religião e períodos críticos ou estressantes da vida.
Dificuldades, sofrimentos e conflitos representam o foco da atenção de orientações da religião de como lidar com a dor, perdas, fracassos, ou com sentimentos de impotência diante de problemas.
A fé, a religião, o poder divino – no dizer das mães - acabam por tornar tolerável o insuportável, ao oferecerem força para lidar com a tragédia e continuar vivendo.
Este aspecto do processo de reestruturação da vida após a perda de um  filho representa um desafio e mostra a necessidade de os profissionais refletirem sobre a relação entre a espiritualidade e o enfrentamento da perda, relação esta muitas vezes por eles negligenciada ou negada.

CUMPLICIDADE MATERNA (mães de filhos assassinados e mães de filhos assassinos)
A maternidade atravessa o dia-a-dia das mulheres desde a infância. Desde criança a menina brinca de boneca, de casinha, ocupando sempre o papel de mãe; e na descrição desse papel da infância encontra-se também a definição de maternidade como cuidadora e responsável pelo bem estar da família.
Esse simbolismo da maternidade unifica entre si as mulheres como únicas a vivenciarem o estado de gestação, nascimento e amamentação de seus filhos, criando também uma esfera emocional de compreensão exclusiva das mães nessas situações.
As maiorias das mães afirmam que a vivência da maternidade e da tragédia, ou seja, de uma maternidade estraçalhada, gera uma solidariedade e uma união muito fortes entre elas.  - Uma mãe relata:...a cada morte que acontece eu revivo em mim a dor, principalmente penso nessas mães que estão passando por isso nesse momento.
Ainda quando se alude às condições da perda de um filho por homicídio, envolvendo diretamente duas situações - a da vítima e a do assassino - é interessante destacar que esta solidariedade entre as mães firma-se na representação simbólica do amor materno, em que a mãe da vítima expõe seus sentimentos de solidariedade e apoio à mãe do assassino.
Assim, são duas as condições de perda de um filho: uma é a da mãe na posição de perder um filho assassinado bruscamente e outra a da mãe na posição de perder um filho para o mundo do crime.
Essa “irmandade” de sentimentos é geralmente aclamada por todas as mães.
Assim, revelá-se que, nos discursos das mães que perderam seus filhos por assassínio, todas acabam por  ser cúmplices e solidárias, até com aquelas mães em relação às quais, pela lógica, isso seria impossível: AS MÃES DOS ASSASSINOS DE SEUS FILHOS. As mães das vítimas reconhecem que essas mães também estão sofrendo, também perderam um filho, e nunca desejam vingança, e sim, punição dos assassinos.

JUSTIÇA X IMPUNIDADE
Para aqueles cuja pessoa amada foi vítima de homicídio, continuar o luto é difícil, senão impossível, até que os aspectos legais do caso sejam resolvidos.
Com a realidade da violência tornando-se parte de suas vidas e com a vivência cruel da impunidade, as mães revelam a construção de uma nova representação: mães que buscam justiça, mães que aparecem nas ruas, que invadem os órgãos públicos, por causa de uma dura realidade que sofrem em comum: A VIOLÊNCIA CONTRA SEUS FILHOS.
Considera-se, ainda, que estas famílias, além da morte dos filhos e da impunidade dos assassinos, trazem a vivência de outras situações múltiplas de violência, num contexto de violência institucional, social, econômica, uma vez que se defrontam com situações relacionadas à justiça como inacessibilidade a autoridades e a informações sobre a resolução dos crimes.
A dor passa a ser uma realidade eternamente presente nas vidas das mães, e é desta dor versus amor que nasce a força para o surgimento da mãe justiceira.
A esperança de reencontrar o filho até não existe mais para essas mães, contudo, permanece a luta, nem que seja pelos outros filhos, pelos filhos de outras mães, para que isso “não volte nunca mais a acontecer”. Essa busca de punição, de que se faça justiça, acaba sendo um motivador, um incentivo de vida.
Com a maternidade a mãe incorpora a função de proteger, cuidar e garantir o bem-estar físico, emocional e social do filho. A perda de um filho representa, para ela, fracasso em sua função materna, e ela se sente roubada em seu papel de proteger e de ser necessária a algo ou alguém. Com o assassinato do filho vem à culpa pela crença de ter falhado em sua proteção, sentindo-se ela responsável pelo que aconteceu, por falhar no dever de cuidar.
Assim, o desejo de justiça se faz indispensável para elas. Quando há a punição do assassino parece que grande parte deste sentimento desaparece, uma vez que as mães podem verificar e dizer que os culpados foram punidos. A condenação, assim, é também uma forma de diminuir a inevitável culpa que elas sentem pelo ocorrido.
Algumas tragédias não escolhem classes sociais, mas o status conta muito quando se trata de reivindicar e garantir direitos. Existe uma constatação evidente de que JUSTIÇA NÃO É SINÔNIMO DE LEI.
Todavia, mesmo neste contexto, as mães sofredoras responsáveis pelos filhos, apeadas de seus direitos, ainda persistem em converter a dor em ação, procurando fazer justiça. A impunidade dos assassinos desvelou uma influência negativa na aceitação da perda do filho e na sua elaboração por parte da mãe.
Podemos dizer que as pesquisas e discussões sobre a questão da morte possuem uma trajetória de conquistas e avanços, mas também um horizonte de muitos desafios, ainda mais quando se pensa em uma rede de apoio em suas diversas áreas – saúde, social, segurança, judicial - para os que vivenciam as perdas.  A dor da perda deveria ser acolhida e compartilhada por esta rede social, que deveria também assegurar amparo e segurança efetiva para a sociedade.
A compreensão das vivências das mães que perderam seus filhos de forma violenta colabora para um olhar mais compreensivo para a perda, possibilitando o enfrentamento da morte com dignidade e apoio. Cria a perspectiva de intervenções profissionais mais adequadas, em que as mães sejam ouvidas e acolhidas. Intervenções capazes de propiciar-lhes melhor superação da dor, a expressão dos seus sentimentos e um reinvestir em suas vidas e desejos. Demonstra ainda, a necessidade de políticas pública para juventude e segurança para sociedade.

(Estudo realizado por: Ana Carolina Jacinto Alarcão, Maria Dalva de Barros Carvalho e Sandra Marisa Pelloso - Universidade Estadual de Maringá - PR/2008).

2 comentários:

  1. Excelente texto Liane... profundo e verdadeiro!
    A perda de um filho, não importa de que forma acontece, é sempre uma experiência muito dolorosa, deixa um vazio imenso, é uma dor eterna... uma tristeza sem fim. E a violência, a morte de jovens por homicídio é realmente um fato que ocorre com frequência alarmante, e infelizmente nada é feito para mudar esta triste e dura realidade.
    Amiga, obrigada pela visita e carinho.
    Fico sempre feliz!
    Muita força pra você! Beijos.

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  2. Liane querida…
    É sempre um aprendizado estar com vc compartilhar, esses momentos de ajuda que sabe tão bem com tanta sabedoria passar com clareza e muito amor para essas mãezinhas especiais.
    Com carinho...

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