A MORTE DE UM FILHO JOVEM EM CIRCUNSTÂNCIA VIOLENTA: COMPREENDENDO A VIVÊNCIA DA MÃE
Atualmente a violência vem ganhando espaço e crescendo de
maneira assustadora. O aumento de mortes de
jovens por homicídio é cada vez mais alarmante, sendo considerado,
já em 1996 pela Organização Mundial de Saúde ( OMS ), como um importante
problema de saúde pública.
A morte de um jovem é interpretada como interrupção no seu
ciclo biológico e isso provoca sentimentos de impotência, frustração, tristeza,
dor, sofrimento e angústia. Sabe-se que a morte é um fato inevitável, contudo,
é difícil aceitar que aconteça precocemente.
Lidar com a morte é uma questão
difícil, muito pior quando ocorre com um filho, isso porque a morte de um jovem
é uma situação que não é naturalmente pensada pela família, pois o normal seria
que os pais morressem antes na perspectiva do ciclo vital.
Se a morte ocorre de maneira brusca e inesperada, é possível
que o sentimento materno de perda irreparável se agrave, levando à não aceitação,
desorganização e impotência da mãe.
Os sentimentos vivenciados pelas mães que perderam seus
filhos por homicídio alimentam a busca de justiça e punição dos culpados, a
ânsia de compreender o que aconteceu e a necessidade de expressar a dor e falar
sobre a tragédia vivenciada, o que pode caracterizar possível fator de risco
para o desenvolvimento de um luto complicado.
As mães que passaram por uma vivência de perda possuem características semelhantes , reveladas nas
categorias analisadas a seguir:
Mumificando o filho na memória;
Morte e publicidade: trilhando dois caminhos;
Suportando a dor da morte de um filho: apego à
espiritualidade;
Cumplicidade materna;
MUMIFICANDO O FILHO NA MEMÓRIA:
A perda de um filho se revela como um sofrimento intenso e
complexo, isso porque, a intensidade da sintomatologia e duração do processo de
luto parental frequentemente difere dos processos de luto por outros tipos de
perda.
Para as mães, os sentimentos e o sofrimento pela
circunstância da morte dos filhos são preservados e revividos a cada lembrança.
Mesmo tendo ocorrido há muito tempo, cada uma relata minuciosamente cada
detalhe do caso ocorrido com seu filho e descreve a seqüência dos fatos, com
lembranças de horários, roupas, falas e desejos do filho antes de morrer.
Os relatos das mães revelaram o persistente estado de
ligação, do vínculo de amor estabelecido com o filho que morreu, gerando
elevadíssimos níveis de angústia.
Outro fator complicador para a vivência da perda de um filho
por assassinato é a violência física contra seu corpo, que desperta nas mães a
revolta e o desespero.
Em estudos as mortes por homicídios ocorridos por asfixia,
armam de fogo, arma branca e agressões contra a vítima (estupro), mortes
violentas que persistem na lembrança de cada mãe como “uma morte não digna”,
aumentando a dor a cada momento e fazendo-a imaginar os instantes de sofrimento
de seu filho ao morrer clamando por ajuda.
O estado em que fica a pessoa que morreu pode ter forte
influência na memória e lembranças que se têm. Os discursos das mães revelam
que essas lembranças são insuportáveis.
Apesar da inaceitabilidade da morte dos filhos, as mães não
negam a morte desse filho. No entanto, é de intensa magnitude o apego às
lembranças e à memória que elas carregam, sobretudo em relação ao filho, as
quais são revividas intensamente, não importando quanto tempo tenha se passado.
Isso se leva a
acreditar em uma mumificação da memória materna, que conduz as mães ao
desespero e a uma situação insustentável, mas também significa a preservação do vínculo saudável
com seu filho. Essa mumificação na memória se revela como um retornar do filho
ao útero materno, para a proteção e privacidade de sentimentos tão nobres e
delicados. Esta mumificação parece não significar negação da morte ou esperança
de retorno do filho assassinado, e sim, demonstrar uma profunda ligação afetiva
e desejo de justiça.
As reações de dor e sofrimento intenso, a mumificação das
lembranças das mães diante da morte de um filho, revelam que as famílias
acometidas pela violência não estão tendo assistência adequada, não têm o apoio
necessário para o enfrentamento de tamanha tragédia, que pode atingir de forma
negativa sua vida pessoal, familiar e social.
MORTE E PUBLICIDADE: TRILHANDO DOIS CAMINHOS
A mídia, em suas diversas formas, difunde amplamente junto à
população os fatos de interesse ou que causam impacto. Das notícias por ela
propagadas a violência está entre as mais comuns, em função dos seus índices
crescentes e alarmantes. Neste sistema de informação, pelo interesse na
audiência, existe uma evidente invasão da imprensa a qual transforma a perda em
morte pública, levando a uma desumanização da morte e banalização do
sofrimento.
Na posição de edição, escolhem os acontecimentos, as mortes
que merecem “investimentos”, aquelas que resultarão em audiência e renderão
leitura. Para isso invadem os locais dos acontecimentos, buscam relatos dos
familiares, e com essa função, certamente correm o risco de atravessar a linha
do bom senso e do respeito.
É patente a reação de repúdio e oposição da maioria das mães
às atitudes dos repórteres ante a morte de seus filhos. Elas relatam a situação
de desconforto em que foram colocadas pela imprensa sensacionalista, que
invadiu sua privacidade somente pela busca de notícia e audiência.
São evidentes os problemas da cobertura jornalística e a
falta de sensibilidade que permeiam os momentos de tragédia. A linha entre o
dever de informar sobre uma tragédia e o respeito aos direitos dos que querem
sofrer longe das lentes e dos microfones é muito tênue e exige dos jornalistas grande respeito e sensibilidade.
Mas a massificação desses meios de comunicação aprofundam a
tendência a transformar mortes trágicas em notícias, e de modo quase
simultâneo, destacam a coisificação da morte. Deste modo, a morte se torna
pública, impessoal, perdendo o seu caráter existencial, como a mais
irremissível de todas as possibilidades.
Essas práticas que invadem e expõem a dor do outro,
principalmente em se tratando de pessoas pobres e/ou anônimas, são comuns nos
jornais e emissoras ditas populares, que vendem muito com as tragédias
anunciadas.
Não obstante, o tratamento dado à notícia e a atitude da
mídia diante da vítima e dos familiares dependem do perfil do órgão. Muitas
vezes a mídia revela uma função positiva quanto à divulgação da informação, o
que torna necessário compreender seu papel por outro prisma. Elemento essencial
em nossa sociedade, à mídia atua também como agente de denúncia e, igualmente,
como um agente fixador da memória, ao contar e produzir uma história para a
sociedade e propagar a informação, podendo intensificar a resolução dos casos.
Diante de várias situações vivenciadas pelas mães em relação
à mídia e à publicidade da morte violenta de seus filhos, compreende-se a
existência de dois caminhos trilhados pelos meios de comunicação ao divulgar a
morte por homicídio, caminhos que são opostos e com diferentes consequências: a
mídia pode-se revelar como uma invasora de privacidade e, sob outra
perspectiva, como uma aliada na busca de justiça e, indiretamente, na
compreensão da dor da perda das mães.
SUPORTANDO A DOR DA MORTE DE UM FILHO: O APEGO À
ESPIRITUALIDADE
O processo de vivência da perda refere-se às concepções que
as mães têm do mundo, pois a perda pode pôr em causa, inicialmente, várias
crenças e desafiar valores fundamentais na busca de compreensão da morte
violenta de um filho.
Diante de uma morte cuja causa não é natural crescem os
sentimentos de incompreensão, injustiça e revolta. A perda torna-se
inaceitável, por tirar dos seus filhos o direito de viver, diferentemente de
quando a morte acontece pelo processo natural de envelhecimento ou doença.
Quando ela ocorre por ato de crueldade dos homens se torna inadmissível e
inconformável para as mães.
A indignação, a revolta e o inconformismo das mães só
encontraram guarida na espiritualidade, na crença de um mundo melhor que o
mundo físico que se apresenta a elas - um mundo de violência, de desrespeito,
de dor e sofrimento. Também, que outros recursos podem ter além da busca pelo
sagrado?
As mães, logo de início, destacaram a crença em Deus como fortaleza
para sobreviver à morte violenta do
filho.
É notória a relação intrínseca entre a religião e períodos
críticos ou estressantes da vida.
Dificuldades, sofrimentos e conflitos representam o foco da
atenção de orientações da religião de como lidar com a dor, perdas, fracassos,
ou com sentimentos de impotência diante de problemas.
A fé, a religião, o poder divino – no dizer das mães -
acabam por tornar tolerável o insuportável, ao oferecerem força para lidar com
a tragédia e continuar vivendo.
Este aspecto do processo de reestruturação da vida após a
perda de um filho representa um desafio
e mostra a necessidade de os profissionais refletirem sobre a relação entre a
espiritualidade e o enfrentamento da perda, relação esta muitas vezes por eles
negligenciada ou negada.
CUMPLICIDADE MATERNA (mães de filhos assassinados e mães de
filhos assassinos)
A maternidade atravessa o dia-a-dia das mulheres desde a
infância. Desde criança a menina brinca de boneca, de casinha, ocupando sempre
o papel de mãe; e na descrição desse papel da infância encontra-se também a
definição de maternidade como cuidadora e responsável pelo bem estar da
família.
Esse simbolismo da maternidade unifica entre si as mulheres
como únicas a vivenciarem o estado de gestação, nascimento e amamentação de
seus filhos, criando também uma esfera emocional de compreensão exclusiva das
mães nessas situações.
As maiorias das mães afirmam que a vivência da maternidade e
da tragédia, ou seja, de uma maternidade estraçalhada, gera uma solidariedade e
uma união muito fortes entre elas. - Uma
mãe relata:...a cada morte que acontece eu revivo em mim a dor, principalmente
penso nessas mães que estão passando por isso nesse momento.
Ainda quando se alude às condições da perda de um filho por
homicídio, envolvendo diretamente duas situações - a da vítima e a do assassino
- é interessante destacar que esta solidariedade entre as mães firma-se na
representação simbólica do amor materno, em que a mãe da vítima expõe seus
sentimentos de solidariedade e apoio à mãe do assassino.
Assim, são duas as condições de perda de um filho: uma é a
da mãe na posição de perder um filho assassinado bruscamente e outra a da mãe
na posição de perder um filho para o mundo do crime.
Essa “irmandade” de sentimentos é geralmente aclamada por
todas as mães.
Assim, revelá-se que, nos discursos das mães que perderam
seus filhos por assassínio, todas acabam por
ser cúmplices e solidárias, até com aquelas mães em relação às quais,
pela lógica, isso seria impossível: AS MÃES DOS ASSASSINOS DE SEUS FILHOS. As
mães das vítimas reconhecem que essas mães também estão sofrendo, também
perderam um filho, e nunca desejam vingança, e sim, punição dos assassinos.
JUSTIÇA X IMPUNIDADE
Para aqueles cuja pessoa amada foi vítima de homicídio,
continuar o luto é difícil, senão impossível, até que os aspectos legais do
caso sejam resolvidos.
Com a realidade da violência tornando-se parte de suas vidas
e com a vivência cruel da impunidade, as mães revelam a construção de uma nova
representação: mães que buscam justiça, mães que aparecem nas ruas, que invadem
os órgãos públicos, por causa de uma dura realidade que sofrem em comum: A
VIOLÊNCIA CONTRA SEUS FILHOS.
Considera-se, ainda, que estas famílias, além da morte dos
filhos e da impunidade dos assassinos, trazem a vivência de outras situações
múltiplas de violência, num contexto de violência institucional, social,
econômica, uma vez que se defrontam com situações relacionadas à justiça como
inacessibilidade a autoridades e a informações sobre a resolução dos crimes.
A dor passa a ser uma realidade eternamente presente nas
vidas das mães, e é desta dor versus amor que nasce a força para o surgimento
da mãe justiceira.
A esperança de reencontrar o filho até não existe mais para
essas mães, contudo, permanece a luta, nem que seja pelos outros filhos, pelos
filhos de outras mães, para que isso “não volte nunca mais a acontecer”. Essa
busca de punição, de que se faça justiça, acaba sendo um motivador, um
incentivo de vida.
Com a maternidade a mãe incorpora a função de proteger,
cuidar e garantir o bem-estar físico, emocional e social do filho. A perda de
um filho representa, para ela, fracasso em sua função materna, e ela se sente
roubada em seu papel de proteger e de ser necessária a algo ou alguém. Com o
assassinato do filho vem à culpa pela crença de ter falhado em sua proteção,
sentindo-se ela responsável pelo que aconteceu, por falhar no dever de cuidar.
Assim, o desejo de justiça se faz indispensável para elas.
Quando há a punição do assassino parece que grande parte deste sentimento
desaparece, uma vez que as mães podem verificar e dizer que os culpados foram
punidos. A condenação, assim, é também uma forma de diminuir a inevitável culpa
que elas sentem pelo ocorrido.
Algumas tragédias não escolhem classes sociais, mas o status
conta muito quando se trata de reivindicar e garantir direitos. Existe uma
constatação evidente de que JUSTIÇA NÃO É SINÔNIMO DE LEI.
Todavia, mesmo neste contexto, as mães sofredoras
responsáveis pelos filhos, apeadas de seus direitos, ainda persistem em
converter a dor em ação, procurando fazer justiça. A impunidade dos assassinos
desvelou uma influência negativa na aceitação da perda do filho e na sua
elaboração por parte da mãe.
Podemos dizer que as pesquisas e discussões sobre a questão
da morte possuem uma trajetória de conquistas e avanços, mas também um
horizonte de muitos desafios, ainda mais quando se pensa em uma rede de apoio
em suas diversas áreas – saúde, social, segurança, judicial - para os que
vivenciam as perdas. A dor da perda
deveria ser acolhida e compartilhada por esta rede social, que deveria também
assegurar amparo e segurança efetiva para a sociedade.
A compreensão das vivências das mães que perderam seus
filhos de forma violenta colabora para um olhar mais compreensivo para a perda,
possibilitando o enfrentamento da morte com dignidade e apoio. Cria a
perspectiva de intervenções profissionais mais adequadas, em que as mães sejam
ouvidas e acolhidas. Intervenções capazes de propiciar-lhes melhor superação da
dor, a expressão dos seus sentimentos e um reinvestir em suas vidas e desejos.
Demonstra ainda, a necessidade de políticas pública para juventude e segurança
para sociedade.
(Estudo realizado por: Ana Carolina Jacinto Alarcão, Maria
Dalva de Barros Carvalho e Sandra Marisa Pelloso - Universidade Estadual de
Maringá - PR/2008).
Excelente texto Liane... profundo e verdadeiro!
ResponderExcluirA perda de um filho, não importa de que forma acontece, é sempre uma experiência muito dolorosa, deixa um vazio imenso, é uma dor eterna... uma tristeza sem fim. E a violência, a morte de jovens por homicídio é realmente um fato que ocorre com frequência alarmante, e infelizmente nada é feito para mudar esta triste e dura realidade.
Amiga, obrigada pela visita e carinho.
Fico sempre feliz!
Muita força pra você! Beijos.
Liane querida…
ResponderExcluirÉ sempre um aprendizado estar com vc compartilhar, esses momentos de ajuda que sabe tão bem com tanta sabedoria passar com clareza e muito amor para essas mãezinhas especiais.
Com carinho...